segunda-feira, 5 de novembro de 2007

ROLAND BARTHES - Sobre o Cinema

Entrevista conduzida por Michel Delahaye e Jacques Rivette realizada em Setembro de 1963.

Abrimos aqui uma série de conversas com algumas testemunhas marcantes da cultura contemporânea.

O cinema tornou-se um acontecimento cultural tal como os outros, e todas as artes, todas as correntes de pensamento, têm de se referir a ele, como ele a elas. A este fenómeno de informação recíproca, por vezes evidente (não são sempre os melhores casos), frequentemente difuso, que nós quereríamos, entre outras coisa tentar delimitar nestas conversas.

O cinema, sempre presente, tanto na retaguarda como em primeiro plano, aqui estará, assim o esperamos, situado numa perspectiva mais vasta, que o arquivismo ou a idolatria (que também têm o seu papel a desempenhar) correm o risco de fazer esquecer.

Roland Barthes, autor de O Grau Zero da Escrita, de Mitologias, dum Michelet de Sur Racine assim como de inumeráveis e excitantíssimos artigos (dispersos até agora no Théatre Populaire, Arguments, La Revue de Sociologie Française, Le Lettres Nouvelles, etc., mas de que esperamos uma recolha em breve), primeiro decifrador e comentador francês de Brecht, é o primeiro dos nossos hospedes de honra.

Como é que integra o cinema na sua vida? Considera-o como espectador e espectador crítico?

Seria necessário talvez partir dos hábitos de cinema, do modo como o cinema chega à nossa vida. No que me diz respeito, não vou com muita frequência ao cinema, apenas uma vez por semana. Quanto á escolha do filme, no fundo, ela nunca é completamente livre; ´+e claro que eu preferiria ir ao cinema sozinho, pois , para mim, o cinema é uma actividade inteiramente projectiva; mas, em consequência da vida social, o que acontece mais frequentemente é que se vai ao cinema a dois ou em grupo e, a partir desse momento, a escolha torna-se, quer se queira ou não, forçada. Se eu escolhe-se de forma puramente espontânea, seria necessário que a minha escolha tivesse um carácter de improvisação total, liberta de qualquer imperativo cultural cripto-cultural, guiada pelas forças mais obscuras de mim próprio. O que levanta um problema na vida do frequentador habitual de cinema, é que há uma espécie de moral mais ou menos difusa dos filmes que é preciso ver, imperativos, forçosamente de origem cultural, que são bastante fortes quando se pertence a um meio cultural (quanto mais não seja porque é preciso ser-se do contra para se ser livre). Algumas vezes isso prevalece, como todos os snobismos. Estamos sempre um pouco a dialogar com essa espécie de lei do gosto cinematográfico, que é provavelmente tanto mais forte quanto essa cultura cinematográfica é fresca. O cinema já não é algo de primitivo; agora, distinguimos nele fenómenos de classicismo, de academismo e de vanguarda, e encontramo-nos colocados, através da própria evolução desta arte, no meio de um jogo de valores. De modo que, quando escolho, os filmes que é preciso ver entram em conflito com a ideia de imprevisibilidade total que ainda representa o cinema para mim e, de forma mais precisa, com filmes que, espontaneamente, eu quereria ver, mas que não são filmes seleccionados por esta espécie de cultura difusa que se está a fazer.

O que é que pensa do nível desta cultura, ainda muito difusa, quando se trata do cinema?

É uma cultura difusa porque é confusa; quero dizer que há no cinema uma espécie de jigajoga possível de valores: os intelectuais põem-se a defender filmes de massas e o cinema comercial pode absorver muito rapidamente filmes de vanguarda. Esta aculturação é especifica da nossa cultura de massas, mas tem um ritmo diferente conforme os géneros; no cinema, parece muito intensa; na literatura, as fronteiras estão muito mais bem guardadas; não acredito que seja possível aderir à literatura contemporânea, a que se faz, sem um certo saber e mesmo sem um saber técnico, porque o ser da literatura se colocou na sua técnica. Em suma, a situação cultural do cinema é actualmente contraditória: ele mobiliza técnicas, dai a exigência de um certo saber, e dum sentimento de frustração de não o possuirmos, mas o seu ser não está na sua técnica, ao contrario da literatura: são capazes de imaginar uma literatura verdade, análoga ao cinema-verdade? Com a linguagem isso seria impossível, a verdade é impossível com a linguagem.

No entanto, referimo-nos constantemente á ideia de uma «linguagem cinematográfica» como se a existência e a significação desta linguagem fossem universalmente admitidas, quer tomemos a palavra «linguagem», num sentido puramente retórico (por exemplo, as convenções estilísticas atribuídas à contre-plongée ou ao travelling) quer a tomemos num sentido muito geral, como relação de um significante e de um significado.

Por mim, provavelmente porque não consegui integrar o cinema na esfera da linguagem, consumo-o de uma forma puramente projectiva, e não como analista.

Não haverá, senão impossibilidade, pelo menos dificuldade do cinema entrar nessa esfera de linguagem?

Podemos tentar situar essa dificuldade. Parece-nos, até agora, que o modelo de todas as linguagens, é a fala, a linguagem articulada. Ora, esta linguagem articulada é um código, ele utiliza um sistema de signos não analógicos ( e que, consequentemente, podem ser, e são, descontínuos); inversamente, o cinema apresenta-se, à primeira vista, como uma expressão analógica da realidade (e, além disso, contínua); e não sabemos porque ponta pegar numa expressão analógica e contínua para aí introduzir, iniciar uma análise do tipo linguístico; por exemplo, como é que se deve cortar (semanticamente), como é que se deve fazer variar o sentido de um filme, de um fragmento de filme? Portanto, se o crítico quisesse tratar o cinema como uma linguagem, abandonando a inflação metafórica do termo, deveria primeiramente discernir se há no contexto fílmico elementos que não são analógicos, ou que são de uma analogia deformada, ou transposta, ou codificada, providos de uma tal sistematização que possam ser tratados como fragmentos de linguagem; encontram-se aí problemas de pesquisa concreta, que ainda não foram abordados, que poderiam sê-lo, à partida, através de espécies de testes fílmicos, no seguimento do que veríamos se é possível estabelecer uma semântica , mesmo que parcial (sem dúvida parcial), do filme. Tratar-se-ia, aplicando métodos estruturalistas, de isolar elementos fílmicos, de ver como é que são compreendidos, a que significados correspondem neste ou naquele caso, e, fazendo variar, ver em que momento a variação do significante implica uma variação do significado. Ter-se-iam, então, verdadeiramente isolado, no filme, unidades linguísticas, com as quais se pode, em seguida, construir as «classes», os sistemas, as declinações.

Não retomará isso certas experiências feitas no fim do cinema mudo, num plano mais empírico, principalmente pelos Soviéticos, e que não foram concludentes, excepto quando esses elementos de linguagem eram retomados por um Eisenstein na perspectiva de uma poética? Mas quando essas pesquisas ficaram no plano da pura retórica, como com Pudovkine, elas foram quase imediatamente contraditas: tudo se passa no cinema como se, desde o momento em que se avançasse uma relação semiológica, esta fosse imediatamente contradita.

De qualquer maneira, se se conseguisse estabelecer uma espécie de semântica parcial sobre pontos precisos (quer dizer, para significados precisos), teríamos muita dificuldade em explicar porque é que todo o filme não é construído como uma justaposição de elementos descontínuos; confrontar-nos-íamos, então, com o segundo problema, o do descontínuo dos signos – ou do contínuo da expressão.

Mas conseguiríamos descobrir essas unidades linguísticas, teríamos avançado, já que elas não estão feitas para serem percebidas como tais? A impregnação do espectador pelo significado realiza-se a um outro nível, diferentemente da impregnação do leitor.

É claro que temos uma perspectiva muito limitada dos fenómenos semânticos, e o que no fundo temos mais dificuldades em compreender são, o que se poderia chamar as grandes unidades significantes; em linguística deparamos com a mesma dificuldade; pois a estilística não está nada avançada (há estilísticas psicológicas mas ainda não as há estruturais). É provável que a expressão cinematográfica pertença também a este conjunto de unidades significantes, correspondendo a significados globais, difusos, latentes, que não são da mesma categoria dos significados isolados e descontínuos da linguagem articulada. Esta oposição entre uma microssemântica e uma macrossemântica constituiria talvez uma outra forma de considerar o cinema como uma linguagem, abandonando o plano da denotação (acaba­mos de ver que é muito difícil de lhe aproximar as unidades primeiras, literais) para passar ao plano da conotação, quer dizer, ao dos significados globais, difusos e, de certa maneira, segundos. Poderíamos começar aqui por nos inspirarmos nos modelos retóricos (e já não literalmente linguísticos) isolados por Jakobson, dotados por ele de uma generalidade extensiva à linguagem articulada e que ele próprio aplicou, de passagem, ao cinema; quero falar da metáfora e da metonímia. A metáfora é o protótipo de todos os signos que podem substituir-se uns aos outros por similaridade; a metonímia é o protótipo de todos os signos cujo sentido se reencontra porque entram em contiguidade, em contágio, como se poderia dizer; por exemplo, um calendário que se desfolha, é uma metáfora; e seríamos tentados a dizer que no cinema, qualquer montagem, quer dizer, qualquer contiguidade significante, é uma metonímia, e isso porque o cinema é montagem, porque o cinema é uma arte metonímica (pelo menos agora).

Mas a montagem não será ao mesmo tempo um elemento indelimitável? Pois tudo é montável, desde um plano de revólver de seis imagens até a um gigantesco movimento de aparelho de cinco minutos, mostrando trezentas pessoas e umas trinta acções entrecruzadas; ora, estes dois planos podem ser montados um a seguir ao outro - e não ficarão, no entanto, no mesmo plano...

Penso que o que seria interessante fazer, seria ver se um processo cinematográfico pode ser convertido metodologicamente em unidades significantes; se os processos de elaboração correspondem a unidades de leitura do filme, o sonho de todo o crítico é poder definir uma arte através da sua técnica.

Mas todos os processos são ambíguos; por exemplo, a retórica clássica diz que a plongée significa o esmagamento; ora, encontra­mos duzentos casos (pelo menos) em que a plongée não tem de maneira nenhuma este sentido.

Essa ambiguidade é normal e não é ela que complica o nosso problema. Os significantes são sempre ambíguos; o número de significados é sempre superior ao número de significantes; sem isso não haveria nem literatura, nem arte, nem história, nem nada do que faz andar o mundo. O que dá força a um significante não é a sua clareza, é que ele seja percebido como significante - eu diria; qualquer que seja o sentido, não são as coisas, é o lugar das coisas que conta. A ligação entre o significante e o significado tem muito menos importância do que a organização dos significantes entre si; a plongée pode ter significado o esmagamento, mas sabemos que essa retórica está ultrapassada porque, precisamente, sentimo-la baseada numa relação de analogia entre plonger e «esmagar», que nos parece ingénua, sobretudo hoje que a psicologia da «denegação» nos ensinou que poderia haver uma relação válida entre um conteúdo e a forma que lhe parece ser a mais «naturalmente» contrária. Neste despertar do sentido provocado pela plongée, o que é importante é o despertar, não é o sentido.

Precisamente, depois de um primeiro período «analógico», não será que o cinema está já a sair desse segundo período de anti-analogia, através de um emprego mais flexível, não codificado, das «figuras de estilo»?

Penso que, se os problemas do simbolismo (porque a analogia põe em causa o cinema simbólico) perdem a sua nitidez, a sua acuidade, é sobretudo porque entre as duas grandes vias linguísticas indicadas por Jakobson, a metáfora e a metonímia, o cinema parece, de momento ter escolhido a via metonímica ou, se preferirem, sintagmática, sendo o sintagma um fragmento amplo, ordenado, actualizado de signos, resumindo, um pedaço de narração. É impressionante que, ao contrário da literatura do «mão se passa nada» (cujo protótipo seria a Educação sentimental), o cinema, mesmo o que não se apresenta à partida corno um cinema de massas, é um discurso em que a história, a anedota, o argumento (com a sua consequência maior, o suspense) nunca está ausente; até o «rocambolesco», que é a categoria enfática, caricatural do anedótico, não é incompatível com o cinema muito bom. No cinema «passa-se qualquer coisa», e este facto tem uma relação estreita com a via metonímica, sintagmática de que eu falava há pouco. Uma «boa história» é, com efeito, em termos estruturais, uma série conseguida de dispatchings sintagmáticos: tendo em conta esta situação (este signo), o que é que a poderá seguir? Há um certo número de possibilidades, mas estas possibilidades existem em número limitado (é esta limitação, este fechamento dos possíveis que está na origem da análise estrutural), e é aí que a escolha que o realizador faz do signo seguinte é significante; com efeito, o sentido é uma liberdade, mas uma liberdade vigiada (pela limitação dos possíveis); cada signo (cada «momento» da narração, do filme) só pode ser seguido por alguns outros signos, por alguns outros momentos; esta operação que consiste em prolongar no discurso, no sintagma, um signo (segundo um número limitado, e por vezes muito restrito, de possibilidades) chama-se uma catálise; na fala, por exemplo, só se pode catalizar o signo cão através de um pequeno número de outros signos (ladra, dorme, come, morde, corre, etc., mas não através de cose, voa, varre, etc.); a narração, o sintagma cinematográfico é submetido, também ele, às regras da catálise, que o realizador pratica, sem dúvida, empiricamente, mas o crítico, o analista deveria tentar reencontrar. Pois, naturalmente, todo o dispatching, toda a catálise tem a sua parte de responsabilidade no sentido final da obra.

A atitude do realizador, tanto quanto a podemos julgar, é ter uma ideia mais ou menos precisa do sentido antes, e reencontrá-la mais ou menos modificada depois. Durante, ele está embrenhado quase inteiramente num trabalho que se situa fora da preocupação do sentido final; o realizador fabrica pequenas células sucessivas guiado por... Por quê? É precisamente isso que seria interessante determinar.

Ele só pode ser guiado, mais ou menos conscientemente, pela sua ideologia profunda, pela opinião que tem do mundo; porque o sintagma é tão responsável pelo sentido como o próprio signo, é por isso que o cinema se pode tornar uma arte metonímica, e já não simbólica, sem nada perder da sua responsabilidade, bem pelo contrário. Recordo-me que Brecht nos tinha sugerido, ao Théâtre Populaire, organizar trocas (epistolares) entre ele e jovens autores dramáticos franceses; isso teria consistido em «jogar» à montagem de uma peça imaginária, ou seja, de uma série de situações, como uma partida de xadrez; um teria avançado uma situação, o outro teria escolhido a situação seguinte e, naturalmente (residia nisso o interesse do «jogo»), cada lance seria discutido em função do sentido final, quer dizer, segundo Brecht, da responsabilidade ideológica; mas autores dramáticos franceses, não as há. De qualquer maneira, vêem que Brecht, teórico arguto - e prático - do sentido, tinha uma forte consciência do problema sintagmático. Tudo isto parece provar que há possibilidades de troca entre a linguística e o cinema, na condição de se escolher uma linguística do sintagma em vez de uma linguística do signo.

Talvez a aproximação do cinema enquanto linguagem não seja nunca perfeitamente realizável; mas ela é ao mesmo tempo necessária, para evitar esse perigo de fruir a cinema como um abjecto que não teria qualquer sentido, mas que seria puro abjecto de prazer, de fascinação, completamente privado de qualquer raiz e de qualquer significação. Ora a cinema, quer queiramos ou não, tem sempre um sentido; há, portanto, sempre um elemento de linguagem que tem a seu papel...

É claro, a obra tem sempre um sentido; mas, precisamente, a ciência do sentido, que conhece actualmente uma promoção extraordinária (através de uma espécie de snobismo fecundo), ensina-nos paradoxalmente que o sentido, se assim se pode dizer, não está encerrada no significado; a relação entre significante e significado (ou seja o signo) aparece no início como o próprio fundamento de qualquer reflexão «semiológica»; mas, seguidamente, é-se levado a ter uma visão do sentido muito mais ampla, muito menos centrada no significado (tudo o que dissemos do sintagma se encaminha nesta direcção); devemos esta ampliação à linguística estrutural, é certo, mas também a um homem como Lévi-Strauss, que mostrou que o sentido (ou mais exactamente o significante) era a categoria mais elevada do intelegível. No fundo, é o intelegível humano que nos interessa. Como é que o cinema manifesta ou reúne as categorias, as funções, a estrutura do intelegível elaboradas pela nossa história, pela nossa sociedade? É a esta pergunta que poderia responder uma «semiologia» do cinema.

É sem dúvida impossível fazer o inintelegível.

Absolutamente. Tudo tem um sentido mesmo o contra-senso (que pelo menos tem o sentido segundo de ser um contra-senso). O sentido consiste numa tal fatalidade para o homem que a arte, enquanto liberdade, parece dedicar-se, sobretudo hoje, não a fazer sentido, mas, pelo contrário, a suspendê-lo; a construir sentidos, mas não a preenchê-los exactamente.

Talvez pudéssemos arranjar aqui um exemplo; na encenação (teatral) de Brecht, há elementos de linguagem que não são, à partida, susceptíveis de serem codificados.

Relativamente a este problema do sentido, a caso de Brecht é bastante complicado. Por um lado, ele teve, como eu o afirmei, uma consciência aguda das técnicas do sentido (o que era muito original relativamente ao marxismo, pouco sensível às responsabilidades da forma); conhecia a responsabilidade total dos significantes mais humildes, como a côr de um fato ou o lugar de um projector; e sabem o quanto ele ficava fascinado com os teatros orientais, teatros em que o significado está muito codificado - seria melhor dizer: redigido segundo um código - e por consequência muito pouco analógico; enfim, vimos com que minúcia ele trabalhava, e queria que se trabalhasse, a responsabilidade semântica dos «sintagmas» (a arte épica, que ele pregou, é aliás uma arte fortemente sintagmática); e, naturalmente, toda esta técnica era pensada em função de um sentido político. Em função de, mas talvez não tendo em vista um; e é aqui que deparamos com a segunda face da ambiguidade brechtiana; interrogo-me se esse sentido comprometido da obra de Brecht não será finalmente, à sua maneira, um sentido suspenso; recordam-se de que a sua teoria dramática comporta uma espécie de divisão funcional do palco e da sala: cabe à obra levantar questões (nos termos, evidentemente, escolhidos pelo autor: é uma arte responsável), ao público encontrar as respostas (o que Brecht chamava a saída); o sentido (na acepção positiva do termo) desterrava-se do palco para a sala; em suma, há no teatro de Brecht um sentido, e um sentido muito forte, mas este sentido é sempre uma pergunta. É talvez isso que explica que esse teatro, se é, como é certo, um teatro crítico, polémico, comprometido, não é, no entanto, um teatro militante.

Esta tentativa pode ser alargada ao cinema?

Parece sempre muito difícil e bastante vão transportar uma técnica (e o sentido é uma) de uma arte para a outra; não por purismo de géneros, mas porque a estrutura depende dos materiais empregues; a imagem espectatorial não é feita da mesma matéria da imagem cinematográfica, ela não se entrega da mesma maneira ao corte, à duração, à percepção; o teatro parece-me ser uma arte muito mais «dirigida» ou digamos, se quiserem, mais «directa», do que o cinema (a crítica teatral parece-me também mais grosseira que a crítica cinematográfica), portanto, mais próxima de tarefas directas, de tipo polémico, subversivo, contestário (não me refiro ao teatro do acordo, do conformismo, da saciedade).

Há alguns anos, evocou a possibilidade de determinar o significado político de um filme examinando, para além do argumento, o processo que o constitui enquanto filme: sendo o filme de esquerda, grosso modo, caracterizado pela lucidez, o filme de direita pelo apelo a uma magia...

Interrogo-me se não haverá artes, por natureza, por técnica, mais ou menos reaccionárias. É o que penso àcerca da literatura; não acredito que uma literatura de esquerda seja possível. Uma literatura problemática, sim, ou seja uma literatura do sentido suspenso: uma arte que provoque respostas, mas que não as dê. Creio que a literatura, na melhor das hipóteses, é isso. Quanto ao cinema, tenho a impressão de que, neste plano, está muito próximo da literatura, e que ele está, pela matéria e pela estrutura, muito mais bem preparado que o teatro para uma responsabilidade muito específica das formas, a que chamei a técnica do sentido suspenso. Creio que o cinema tem dificuldades em fornecer sentidos claros e que no estado actual não o deve fazer. Os melhores filmes (para mim) são aqueles que melhor suspendem o sentido. Suspender o sentido é uma operação extremamente difícil, exigindo ao mesmo tempo uma técnica muito grande e uma lealdade intelectual total. Isso quer dizer livrar-se de todos os sentidos parasitas, o que é extremamente difícil.

Viu filmes que lhe deram essa impressão?

Sim, o Ange exterminateur. Não creio que o aviso de Buñuel no início: eu, Buñuel, digo-lhes que este filme não tem qualquer sentido - não creio de maneira nenhuma que isso seja uma graça, creio que é verdadeiramente a definição do filme. E, nesta perspectiva, o filme é muito bonito: podemos ver como é que, a todo o momento, o sentido é suspenso, sem nunca ser, bem entendido, um contra-senso. Não é, de maneira nenhuma, um filme absurdo; é um filme que está cheio de sentido; cheio do que Lacan chama a «significância». Está cheio de significância, mas não tem um sentido, nem uma série de pequenos sentidos. E por isso mesmo, é um filme que abala profundamente, e que abala para além do dogmatismo, para além das doutrinas. Normalmente, se a sociedade dos consumidores de filmes fosse menos alienada, este filme deveria como se diz vulgarmente e com justiça, «fazer reflectir». Aliás, poder-se-ia mostrar, mas seria necessário tempo, como é que os sentidos que «agarram» a todo o instante, sem termos nada a ver com isso, são captados num dispatching extremamente dinâmico, extremamente inteligente, em direcção a um sentido seguinte que, ele próprio, nunca é definitivo.

E o movimento do filme é o próprio movimento desse dispatching perpétuo.

Há também neste filme, um êxito inicial, que é responsável pelo êxito global: a história, a ideia, o argumento têm uma nitidez que dá a ilusão de necessidade. Temos a impressão de que Buñuel só teve de puxar o fio. Até agora, eu não era muito buñuelista; mas aqui, Buñuel foi capaz de, além do mais, exprimir toda a sua metáfora (pois Buñuel sempre foi muito metafórico), todo o seu artesanal e reserva pessoal de símbolos; tudo foi tragado por essa espécie de nitidez sintagmática, pelo facto do dispatching ser feito, em cada segundo, exactamente como era preciso.

Aliás, Buñuel sempre confessou a sua metáfora com uma tal nitidez, sempre soube respeitar a importância do que está antes e do que está depois de tal modo que era já isolá-la, pô-la entre aspas, portanto, ultrapassá-la ou destruí-la.

Infelizmente, para os vulgares amadores de Buñuel, este define-se sobretudo através da sua metáfora, da «riqueza» dos seus símbolos. Mas, se o cinema moderno tem uma direcção, é no Ange exterminateur que se pode encontrá-la...

A propósito de cinema moderno, viu l'Immortelle?

Sim... As minhas relações (abstractas) com Robbe-Grillet complicam-me um pouco as coisas. Não estou bem disposto; eu não teria querido que ele fizesse cinema... Pois bem aí, a metáfora lá está... De facto, Robbe-Grillet não mata de modo algum o sentido, baralha-o; pensa que basta baralhar um sentido para o matar. Aliás, é difícil matar um sentido.

E ele dá cada vez mais força a um sentido cada vez mais plano.

Porque ele «varia» o sentido, não o suspende. A variação impõe um sentido cada vez mais forte, de tipo obsessivo: um número reduzido de significantes «variados» (no sentido da palavra em música) remete para o mesmo significado (é a definição da metáfora). Pelo contrário, neste famoso Ange exterminateur, sem falar da espécie de zombaria dirigida à repetição (no princípio, nas cenas literalmente retomadas), as cenas (os fragmentos sintagmáticos) não constituem uma sequência imóvel (obsessiva, metafórica), elas participam, cada uma, na transformação de uma sociedade de festa em sociedade de constrangimento, elas constroem uma duração irreversível.

Além disso, Buñuel jogou o jogo da cronologia; a não cronologia é uma facilidade; é uma falsa prova de modernidade.

Voltamos aqui ao que eu dizia no início: é bonito porque há uma história; uma história com um princípio, um fim, um suspenso. Actualmente a modernidade aparece demasiadas vezes como uma forma de fazer batota coma história ou com a psicologia. O critério mais imediato da modernidade, para uma obra, é não ser «psicológica», no sentido tradicional do termo. Mas, ao mesmo tempo, não se sabe de maneira nenhuma como expulsar essa famosa psicologia, essa famosa afectividade entre os seres, essa vertigem de relação que (o paradoxo está nisso) já não está a cargo das obras de arte, mas das ciências sociais e da medicina: a psicologia, hoje, já só está na psicanálise que, por mais inteligência, por maior envergadura que aí ponham, é praticada por médicos: a «alma» tornou-se, em si, um facto patológico. Há uma espécie de demissão das obras modernas face à relação inter-humana, interindividual. Os grandes movimentos de emancipação ideológica - diga­mos, para falar com clareza, o marxismo - deixaram de lado o homem privado, e é certo que não poderiam ter feito de outra maneira. Ora, sabemos muito bem que aí ainda há intrujice, ainda há algo que não funciona: enquanto houver «cenas» conjugais, haverá perguntas a fazer ao mundo.

O verdadeiro grande tema da arte moderna, é o da possibilidade da felicidade. Actualmente, tudo se passa no cinema como se existisse a verificação de uma impossibilidade da felicidade no presente, com uma espécie de recurso ao futuro. Talvez os próximos anos assistam às tentativas de uma nova ideia de felicidade.

Exactamente. Nenhuma grande ideologia, nenhuma grande utopia se encarrega hoje dessa necessidade. Tivemos toda uma literatura utópica interespacial, mas a espécie de micro-utopia que consistiria em imaginar utopias psicológicas ou de relação, isso não existe de todo. Mas se a lei estruturalista de rotação das necessidades e das formas funciona aqui, deveríamos chegar em breve a uma arte mais existencial. Quer dizer que as grandes declarações antipsicológicas destes últimos dez anos (declarações em que eu próprio participei, como não podia deixar de ser) deveriam voltar atrás e tornarem-se ultrapassadas. Por mais ambígua que seja a arte de Antonioni, é talvez por isso que ele nos toca e nos parece importante. Ou seja, se quisermos resumir o que desejamos agora: nós esperamos filmes sintagmáticos, filmes com história, filmes «psicológicos».